Florbela Espanca

Tipo de documento:TCC

Área de estudo:Literatura

Documento 1

Não apenas sua fisionomia bem como seus versos são permeados por um total desamparo. Seus leitores, ao contemplarem seu semblante, têm a medida exata do abismo de sua existência. Ainda que muitos críticos visem decifrar a obra da escritora por meio da análise de eventos importantes de sua vida – como, por exemplo, seus lutos, seus casamentos, o abandono parental e o falecimento precoce de seu irmão - tal atitude revela-se reducionista perante à magnitude da obra de Florbela. Não pretendemos aqui adotar semelhante método. Antes temos por objetivo refletir sobre as diversas facetas dessa instigante mulher e sua literatura concomitantemente frágil e forte. Os poetas que acompanhavam este movimento compunham poesias abarrotadas de musicalidade, recursos sonoros e outros artifícios tais como as aliterações, figuras de linguagem e assonâncias, abrindo mão do rigor que pregava o parnasianismo.

Tal estética remete à esfera espiritual, ao metafísico e ao inconsciente. O poeta, por valorizar o obscurantismo, aprecia o mistério e manifesta-se de forma melancólica. Este não consegue ajustar-se ao mundo, que lhe soa incômodo e absurdo. Sob este aspecto, o Simbolismo encontra eco no Romantismo, que pretende escapar da insatisfação promovida pelo mundo material. Tais inovações suscitaram uma ruptura com os movimentos anteriores, recebendo muitas críticas por parte dos cidadãos comuns e dos pensadores. Envolvidos com temáticas de misticismo, signos e sinestesia, aliadas ao nacionalismo e ao mito sebástico – que versa sobre o regresso de D. Sebastião como o salvador da pátria – surgem alguns nomes, dentre eles Camilo Pessanha e Florbela Espanca. A poesia de Pessanha era menos carregada no viés sentimental do que a de Espanca e contribuiu fortemente para o Modernismo português.

Já a poesia de Florbela era marcada por uma série de frustrações e uma carga muito grande de erotismo. Fernando Pessoa, Camilo Pessanha e Camões também a inspiram. O brasileiro Cruz e Sousa, um dos expoentes do Simbolismo brasileiro, apesar das divergências apontadas por Bosi entre ambos os movimentos, também mescla elementos da natureza e do sagrado em seus poemas. Como exemplo, podemos destacar os primeiros versos do poema Ângelus. “Ah, lilases de Ângelus harmoniosos,/ Neblinas vesperais, crepusculares,/ Guslas gementes, bandolins saudosos,/ Plangências magoadíssimas dos ares. ”(SOUSA, 2002, p. Este traço é bastante comum aos poetas portugueses, de modo geral, pois todos desejavam reaver uma Portugal utópica, que não existe mais e tendiam a tecer devaneios nostálgicos e lamuriosos. Com Florbela não poderia ser diferente.

Atropelada por tantos acontecimentos tórridos, ela não se preocupava em assumir uma personalidade distante da sua própria apenas para satisfazer seus possíveis leitores. Logo sua poesia segue num tom confessional em que todo o abandono, a angústia, as saudades e as carências podem ser vislumbrados como itens expostos em uma vitrine. Para finalizar este capítulo, podemos concluir que certamente a mulher Florbela, na atualidade, seria alguém com fortes ideais, que se manifestaria de forma veemente em ruas de Lisboa – ou onde quer que estivesse – levando sua poesia e seu pensamento feminista a todos. No livro póstumo Charneca em flor são matizadas as sensações, os desejos, o frêmito de corpos sonoros, enfim, o inalcançável de alguma palavra que dê sentido ao enigma de ser mulher.

“Frêmito do meu corpo a procurar-te, /Febre das minhas mãos na tua pele/Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,/Doido anseio dos meus braços a abraçar-te,/Olhos buscando os teus por toda parte,/Sede de beijos, amargor de fel,/Estonteante fome, áspero e cruel,/Que nada existe que a mitigue e a farte!” ( PESSOA, 2014, p. Este enigma de ser mulher de que fala a autora é amplamente explorado nos livros da poeta. Embora este poema específico de Charneca em Flor, mencionado por Pessoa, seja apaixonado e febril, como que demonstrando que a vida não dá conta da beleza da arte, deparamos também com poemas que mesclam o desejo carnal ao desejo de morte tais como, por exemplo, o poema denominado Volúpia.

À guisa de ilustração, transcrevemos aqui um trecho do mesmo. O contacto com os cheiros, com as multitudes de pessoas, de luzes urbanas e das estrelas distantes apenas acentua como foi incompleto o desejo, que termina em suspiros e soluços, sonhos húmidos, dedos crispados, bocas famintas. Este prazer momentâneo e difuso termina num cansaço, não inútil, mas por cumprir”. TORRES, 2008, p. Com a proibição do prazer sexual feminino, ainda mais aguçada na época em que viveu Florbela, pode-se dizer que ela buscava refrear seus impulsos e manter a sanidade ao adotar uma imagem religiosa e pura de si mesma, porém, muitas vezes seus esforços eram em vão, já que ela não podia escapar de todo de sua natureza. Logo, podemos imaginar que o erotismo, em sua obra, surge em locais obscuros e no mais reservado de sua intimidade, como algo privado que insiste em transbordar de sua alma.

” ( ESPANCA, 2002, p. Neste, é possível detectar com clareza o modo como ela se diminui perante o que seria a imagem ideal – o alabastro, branco, imaculado e sem ranhuras – e como insere-se num rol de pessoas comuns, que cometem atrocidades de tempos em tempos e podem ser vistas, aos olhos de Deus, como pecadoras. Florbela está, a todo o momento, a julgar-se e a denegrir sua própria imagem, pois enxerga o mundo através das lentes do sofrimento. Divide-se ela entre a sofreguidão da culpa, da melancolia e do abandono, sofrido ainda na infância, e sua porção mulher que transborda pela incontinência do desejo. Como um ébrio, ela perambula, ora pela rua, ora pela calçada, venerando às alturas do céu, enquanto digladia-se com os males da terra.

” ( BATAILLE, 2013, p. Perdendo-se, ela encapsula-se dentro de si mesma, fantasiando, por intermédio da voz do eu-lírico, o amante ideal e a liberdade que este lhe oferece, como vemos em análise de Farra: “Uma outra dimensão erótica, a do retiro sensual, a do casulo, se encontra, por exemplo, num outro poema de Charneca em flor. O delicioso devaneio acerca da intimidade domiciliada, acionado pelo soneto “A nossa casa”, parece se desempenhar como um assentamento de terreno, como uma espécie de rito de apaziguamento do chão onde essa morada deverá ser construída. Na procura ansiosa por ela, o calor do desejo é já suficiente para, num átimo, construí-la, visto que a casa devaneada é o bem mais prezado do mundo, o mais invejado, lugar de repouso, de proteção contra a fluidez da vida externa.

Concebida como o refúgio, neste caso, aéreo, ela se alça como um ninho, onde a doçura e a leveza do beijo são comparados à diafaneidade da asa”. ” O outro não espera nunca. Às vezes quero representar aquele que não espera; tento me ocupar em outro lugar, chegar atrasado; mas nesse jogo perco sempre: o que quer que eu faça, acabo sempre sem ter o que fazer, pontual, até mesmo adiantado. A identidade fatal do enamorado não é outra senão: sou aquele que espera. ” À Espanca compete este papel de quem espera e ela não parece cansada ou insatisfeita por esperar. O ser enamorado sonha e não cogita a desesperança, o desesperar. A minha Dor não cabe/ Nos cem milhões de versos que eu fizera!(.

” ( PESSOA, 2014, p. Tamanha é sua dor que ela vê-se forçada a externá-la a todos, como uma bailarina que, em meio a uma apresentação, comete um erro tolo em sua performance ou acidenta-se gravemente e é impedida de dançar. Contudo, ela não se importa de modo algum com a plateia que poderia ovacioná-la, mas com sua chaga, com sua sina. No tocante a um conto intitulado Amor de outrora, escrito por Florbela em 1927, Torres destaca um trecho em que percebemos o quão inevitável é para a escritora deixar de falar de sua própria condição, da melancolia que a perturba. As mulheres, mais comumente acometidas por estes males, queixavam-se de angústia, de uma aflição lancinante e de falta de ar. Nas palavras de Pessoa, “Na interpretação da psicanálise, a poesia para Florbela Espanca é uma das vias da feminilidade, que ao lado da via da histeria, da mascarada e do amor constituem tentativas da mulher de encontrar um significante que possa representá-la.

É certo que, por meio da poesia, Florbela consegue se inscrever no círculo em que, a só tempo, reconhece seu desejo e é reconhecida pelo Outro. Sabemos, no entanto, que a intensidade dos seus dizeres não lhe garantiu uma vida longa. ” (PESSOA, 2014, p. Este abandono parental e, posteriormente fraternal – uma vez que seu irmão suicida-se ao perder a mulher que tanto amava – simbolizam subtrações de forte carga emocional e atingem em cheio o coração e a mente já frágeis da poeta. Se antes ela desejara a morte, neste momento a deseja certamente com mais veemência. O poema Deixai entrar a morte evidencia esta ânsia. “Deixai entrar a Morte, a Iluminada. A que vem pra mim, pra me levar. Ela grita, esperneia, expõe suas chagas, porém não se sente ouvida, acolhida ou acarinhada.

O exercício da escrita é seu único refúgio. O amor e a dor em Florbela Espanca A dor em Espanca, quando não se faz presente por si só, chega acompanhada pela sofreguidão e pelo tédio. Muitos de seus poemas são marcados por uma apatia infinita, em que há uma impossibilidade constante de prazer. Em Livro de Mágoas e Livro Sóror Saudade é que mais notamos tais sentimentos. No poema Voz que se cala, por exemplo, encontramos uma sequência de estrofes em que Florbela fala de seu amor pela natureza de forma quase positiva. Após enumerar uma série de belezas e coisas que declara amar, ela queixa-se da dor da existência. Para que haja maior clareza, transcrevemos aqui o poema em sua íntegra.

“Amo as pedras, os astros e o luar/ Que beija as ervas do atalho escuro,/ Amo as águas de anil e o doce olhar/ Dos animais, divinamente puro. Amo a hera que entende a voz do muro/ E dos sapos, o brando tilintar/ De cristais que se afagam devagar/ E da minha charneca o rosto duro. ” (SILVA, 1974, p. O ficcional não interessa a Florbela. Seu desamparo é tão verossímil e lancinante que, para ela, provavelmente seria inconcebível falar sobre algo que ela não tivesse experimentado por si mesma. A dor é real, tangível. A arte imita a vida. Há lírios/ Dum roxo macerado de martírios,/ Tão belos como nunca os viu alguém! /Nesse triste convento aonde eu moro,/ Noites e dias rezo e grito e choro,/ E ninguém ouve… ninguém vê… ninguém… ( ESPANCA, 2002, pp.

Como vemos, é total a desolação da poeta nestes versos. Sua dor é comparada a um convento, com sua sobriedade e tristeza características. É um espaço onde o sol não penetra, como uma cova. Os sinos anunciam tanta amargura que é como se um corpo estivesse a ser velado. Portanto, podemos dizer que a poeta apresenta-se mais reservada e circunspecta. Silva, em seu livro Teoria da Literatura, menciona uma lista com diferentes classificações atribuídas aos poetas - de acordo com características presentes em suas obras - elaborada por Guy Michaud. Através de cuidadosa análise destes tipos, podemos afirmar que a poesia de Espanca a coloca, em partes, em duas categorias distintas, que são as seguintes: “Tipo feminino – Caracterizado fundamentalmente pelo instinto sexual, que ora se apresenta sob o aspecto da sedução, ora sob o aspecto do instinto maternal.

Tipo sentimental - exteriormente frio e reservado, é intimamente dotado de uma aguda emotividade. Profundamente introvertido, amante da solidão, voluptuosamente debruçado sobre sua existência e a sua subjectividade, tem um pendor invencível para se autoanalisar em diários íntimos. Assim aconteceu em sua vida e em grande parte de sua obra. A religiosidade em Florbela Espanca O elemento religioso no texto de Florbela é bastante recorrente; surge ora de forma mais velada, ora de forma mais evidente. Em algumas passagens de sua obra, é possível notar, como no poema Fanatismo, que compõe o Livro de Soror Saudade, a mescla do amor divino e de um amor imaginário que a autora experimenta. Para que possamos refletir melhor sobre o poema, o transcrevemos aqui integralmente. “Minha alma, de sonhar-te, anda perdida,/ Meus olhos andam cegos de te ver! Não és sequer razão do meu viver,/ Pois que tu és já toda a minha vida!/ Não vejo nada assim enlouquecida.

Como ela ousaria equiparar um mortal à imagem sagrada de Deus? Espanca nada tinha a perder, após tantos lutos, de forma que, o que ainda a mantinha um pouco mais viva e um pouco mais forte era a sua religiosidade e sua imaginação. De acordo com Soares, tal poema seria uma tentativa de encontrar-se a si mesma enquanto busca pela divindade. “O ser como sujeito, indivíduo, parece ser o centro de suas preocupações nos poemas que se inscrevem nessa temática. Na tentativa de cumprir essa empreitada, Florbela passeia pela história, pelo mundo da imaginação e da fantasia, promove o encontro com o Outro, rasteja ao rés do chão, afunda no mundo de maldades e pecados, ascende ao espaço infinito e busca a divindade.

”( SOARES, 2012, p. O amor, para Florbela, é pura transgressão já que ultrapassa o físico, e preenche toda a vida – como vimos no em Fanatismo – profanando assim todos os espaços. É a fusão do que é celeste e do que é terreno. É uma profanação a que ela se permite; um espaço onde há a oportunidade de anestesiar-se do mundo. Assim é para Espanca a religiosidade, o amor e a escrita, onde ela refugia-se sem ter que prestar contas à sociedade, sem ter que atestar sua loucura ou sua sensatez. No poema de nome Exaltação, Florbela exprime com muita intensidade aquilo que lhe dá prazer, como vemos nos versos abaixo: “Viver!. Além disso, ela reconhece a si própria como integrante de uma classe que está à margem da sociedade – a dos boêmios, vagabundos e poetas - considerando-se sua irmã, com inicial maiúscula, isto é, uma irmã em termos religiosos.

Ou seja, o entusiasmo que a acomete nestes versos é compartilhado com o ato de escrever, com o ser amado e com a divindade. O enamoramento, para a poeta, é uma espécie de êxtase místico, em que não há qualquer compromisso com a realidade. É algo que está mais na esfera do espiritual, do esotérico. Além disso, em outros poemas, o eu-lírico florbeliano surge como alguém que presta a vassalagem amorosa a alguém que ela reconhece superior, como se fosse ser fiel a este alguém pelo resto de seus dias, subordinando-se a todos os seus mais íntimos desejos. ” ( TORRES, 2008, p. Conforme mandam as convenções, Espanca foi obediente e casou-se três vezes, provavelmente na tentativa vã de encontrar o amor paternal ou o amor de seu irmão, morto tão prematuramente.

Este amor maior que ela tanto ansiava talvez só coubesse dentro de seus versos. Deveria simbolizar a união entre dois seres apaixonados, tocados por Deus em sua dança amorosa. Como dentro desse sonho dormia uma impossibilidade, nenhum relacionamento terreno seria capaz de suprir tamanho abandono e tamanha sede de amor. Através de suas construções belamente elaboradas, com muitos apelos sensoriais e afetivos, tomamos conhecimento do seu abandono e dos sonhos da mulher Florbela, ora muito frágil, ora muito destemida. Moderna por sua conduta, Espanca mendiga a atenção do ser amado e suplica que não seja mais uma vez deixada de lado. Dessa forma, a mulher Florbela surgiu como alguém muito atuante e à frente de seu tempo, calada e circunspecta perante a sociedade, porém, bastante verborrágica e sensível no espaço literário, onde ela tão bem se expressava.

Em seus escritos, ela critica os papéis impostos à mulher enquanto busca a sua própria identidade. A fixação no ser do Outro representa uma vontade de livrar-se de sua própria pele e fundir-se ao objeto amado, de modo simultaneamente sacro e profano. Aderaldo. Do romantismo ao simbolismo. São Paulo - Rio de Janeiro: DIFEL, 1976. ESPANCA, Florbela. Contos e diários. MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2001. SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. php?script=sci_abstract&pid=S0873-65292008000300008&lng=pt&nrm=iso> Acesso em: 05/04/2019. PAZ, Octavio. A dupla chama do amor e do erotismo. São Paulo: Siciliano, 1994. PESSOA, Lidia de Noronha. São Paulo: Martins Fontes, 1974. SOARES, Marly Catarina. Florbela Espanca: seus desejos, seus temores, seu passado, seu presente.

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