O CONCEITO DE VIDA LÍQUIDA DE ZYGMUNT BAUMAN E A CULTURA DO CANCELAMENTO

Tipo de documento:Artigo acadêmico

Área de estudo:Direito

Documento 1

Em tempos de globalização e divulgação de dados instantaneamente, onde qualquer pessoa que tenha acesso a um celular pode gravar vídeos ou áudios, tornou-se extremamente perigoso expressar qualquer opinião pessoal que não esteja em conformidade com o que é colocado na mídia como comportamento socialmente aceitável. É como se a grande massa funcionasse – quase nunca de forma espontânea – como um grande reality da vida real e a qualquer momento uma pessoa pode ser colocada na berlinda, julgada e expulsa do jogo social. Esta cultura, que vem ocorrendo de forma sistemática na mídia, também pode englobar fatos não verdadeiros – as famosas fakes news – e, da mesma forma como as antigas fofocas, podem prejudicar de forma irremediável a reputação de uma pessoa, tendo como agravante o fato de conseguir atingir um número bem maior de pessoas, indo muito além de uma disseminação local.

Ainda de acordo com SANCHES, um colunista do The New York Times, Ross Douthat, escreveu sobre o tema dizendo que uma pessoa pode ser cancelada por uma simples piada que soou mal ou qualquer coisa que disse ou fez há muito tempo, desde que um registro do fato caia na internet. “E você não precisa ser proeminente, famoso ou político para ser publicamente envergonhado e permanentemente marcado: tudo o que você precisa fazer é ter um dia particularmente ruim e as consequências podem durar enquanto o Google existir". O pensamento de Bauman, mais que atual, torna-se um instrumento fundamental para se compreender esta cultura de descarte das pessoas baseadas em atitudes, opiniões ou um fato qualquer, desconsiderando o caráter contraditório e mutável do ser humano.

Além disso, o conceito de “vida líquida” criado por ele para definir as relações estabelecidas na sociedade contemporânea, podem auxiliar-nos a compreender e refletir acerca das implicações das atitudes adotadas pelas pessoas no mundo virtual e seus reflexos na sociedade. PROBLEMÁTICA E JUSTIFICATIVA No mundo atual - ainda mais em tempos de Pandemia -, onde as pessoas estão imersas cada vez mais nas redes sociais, a preocupação com a imagem tornou-se quase uma obsessão. Se antes do advento da internet as pessoas, principalmente as famosas, já se preocupavam com a sua figura pública, com o avanço das tecnologias e o acesso de qualquer pessoa a celulares com câmeras e gravadores de voz, esta preocupação tornou-se mais que uma paranoia, pois é justificada pela “cultura do cancelamento”.

Hoje em dia, qualquer pessoa pode se ver de repente, sendo famosa ou não, no centro de uma polêmica na internet. • Definir o conceito de “cultura do cancelamento”, exemplificando a forma como ela se manifesta nas redes sociais e suas implicações na vida das pessoas. • Refletir e apontar os pontos de intersecção entre o pensamento de Bauman e a “cultura do cancelamento” 4 METODOLOGIA DA PESQUISA A metodologia utilizada no desenvolvimento deste artigo é uma revisão bibliográfica qualitativa. Partindo da obra do autor principal, Zygmunt Bauman, “Vida Líquida”, buscou-se nos bancos de dados SciELO, Google e Google Acadêmico, artigos e demais publicações (reportagens) sobre os temas, utilizando como descritivos as palavras “vida líquida” e “cultura do cancelamento”. Não foi estabelecido critério de exclusão por data, posto que vários artigos encontrados, sobre o pensamento do autor principal, embora escritos nos últimos 15 anos, ainda se mostraram relevantes para a compreensão de seu pensamento 5 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 5.

Bauman e o conceito de Vida Líquida Já no início de sua obra, o autor deixa claro que “vida líquida” e “modernidade líquida” são dois conceitos intimamente ligados. Nada pode ficar parado; tudo tem uma data de vencimento e um destino: lixo! [. A necessidade aqui é de correr com todas as forças para permanecer no mesmo lugar, longe da lata de lixo que constitui o destino dos retardatários. Destruição criativa" é a forma como caminha a vida líquida, mas o que esse termo atenua e, silenciosamente, ignora é que aquilo que essa criação destrói são outros modos de vida e, portanto, de forma indireta, os seres humanos que os praticam. A vida na sociedade líquido-moderna é uma versão perniciosa da dança das cadeiras, jogada para valer.

O verdadeiro prêmio nessa competição é a garantia (temporária) de ser excluído das fileiras dos destruídos e evitar ser jogado no lixo. Alguns podem ser colocados, por mais tempo, bem perto do polo das mercadorias. Nenhum consumidor, no entanto, pode estar plena e verdadeiramente seguro de que não cairá perto, desconfortavelmente perto, de suas cercanias. Só como mercadorias, só se forem capazes de demonstrar seu próprio valor de uso, é que os consumidores podem ter acesso à vida de consumo. Na vida líquida, a distinção entre consumidores e objetos de consumo é, com muita frequência, momentânea e efêmera, e sempre condicional. Podemos dizer que a regra aqui é a reversão de papéis, embora até mesmo essa afirmação distorça a realidade da vida líquida, na qual os dois papéis se interligam, se misturam e se fundem.

Não há lugar para a individualidade e a criatividade. Estas são características relegadas ao “espírito do grupo”. Assim, Bauman ressalta que, por esse motivo, a “identidade” pode ser potencialmente perigosa e mortal para a coletividade. Este fato levantado pelo autor torna-se fundamental para os objetivos deste estudo, na medida em que nos auxilia a compreender os fatores que levam as pessoas a adotarem a postura de “cancelamento” nas redes sociais: “[. quando a individualidade é um "imperativo universal" e a condição de todos, o único ato que o faria diferente e, portanto, genuinamente individual seria tentar - de modo desconcertante e surpreendente - não ser um indivíduo. A Cultura do Cancelamento A ideia de que os homens nascem livres e iguais é, ao mesmo tempo, verdadeira e enganadora: os homens nascem diferentes.

Eles perdem sua liberdade social e sua autonomia individual quando procuram tornar-se parecidos entre si. RIESMAN, David. A Multidão Solitária, 1971) A “cultura do cancelamento”, como já foi dito anteriormente, é um conceito que surgiu recentemente na mídia para explicar o linchamento virtual sofrido por algumas pessoas, sejam elas famosas ou não, em virtude de algo que falaram, postaram na internet ou alguma atitude tomada e que foi reprovada por usuários na internet. Os “canceladores”, considerados “influenciadores” do comportamento da massa devido ao número de seguidores que possuem, adotam uma postura de censores ou juízes da moralidade alheia, monitorando o pensamento, as atitudes, as opiniões e as ações das outras pessoas, demonstrando sua reprovação com a sugestão de uma exclusão em massa daquela pessoa das redes sociais e da vida real, o que pode acarretar prejuízos incalculáveis, tanto financeiros quanto emocionais, para a pessoa que foi “cancelada”.

” MENDES (2008) em um artigo sobre os blogs pessoais demonstra que os diários pessoais feitos na web deveriam, a princípio, representar os pensamentos e os fatos da vida de uma dada pessoa. A vida comum e diária é transformada em algo espetacular e compartilhada como forma de sair do anonimato e da insignificância da vida comum, para se tornar um “alguém” no espaço cibernético. O problema, segundo a autora, é que a confusão entre o público e o privado acaba sendo comum em vários deles, desconstruindo o conceito de privacidade. Além disso, os blogueiros acabam tornam-se personagens de si mesmo, representados em textos e imagens. Embora Mendes não se refira à cultura do cancelamento, seu artigo demonstra que toda esta exposição excessiva é uma demonstração clara de o quanto é perigoso este espaço virtual, onde uma pessoa acredita estar em segurança, compartilhando sua vida corriqueira, porém uma única palavra ou frase moralmente repreensível que escape num momento em que uma web cam esteja ligada, embora o blogueiro acredite que não, será o suficiente para jogar por terra toda a sua trajetória de vida e transformá-la em um alvo de rancor e ódio direcionado.

É possível adicionar e deletar amigos, e controlar as pessoas com quem você se relaciona. Isso faz com que os indivíduos se sintam um pouco melhor, porque a solidão é a grande ameaça nesses tempos individualistas. Mas, nas redes, é tão fácil adicionar e deletar amigos que as habilidades sociais não são necessárias. Muita gente as usa não para unir, não para ampliar seus horizontes, mas ao contrário, para se fechar no que eu chamo de zonas de conforto, onde o único som que escutam é o eco de suas próprias vozes, onde o único que veem são os reflexos de suas próprias caras. As redes são muito úteis, oferecem serviços muito prazerosos, mas são uma armadilha.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Se observarmos os conteúdos publicados na mídia nas últimas décadas acerca das carreiras e “dicas para ser bem sucedido” no mercado de trabalho, podemos perceber que há uma indução à não permanência num mesmo emprego por muito tempo em claro contraste com a visão profissional da sociedade das décadas passadas, onde as pessoas buscavam o ingresso numa boa empresa ou se estabelecer num certo ramo de negócios, visando o reconhecimento de excelência da sua competência e o estabelecimento de uma tradição. PORCHEDDU (2009) descreve que nos dias atuais mesmo as revistas de amenidades foram vencidas pela cultura da modernidade líquida e pelo aconselhamento sobre o que é “in” (correto, na moda) e o que é “out” (decadente, descartável) Para Bauman, a “modernidade líquida” se especializou em livrar-se das coisas; descartar e eliminar tornou-se a ordem máxima e desta cultura de empurrar para o lixo o que não tem mais serventia nada escapa, inclusive as relações sociais e amorosas.

Ao mesmo tempo em que o avanço da tecnologia transformou o mundo ao nosso redor num piscar de olhos, o homem moderno ainda claudica entre o desapego de seus valores, ideias e conceitos e o encontro de um lugar na sociedade, buscando inserir-se neste contexto caótico e vertiginoso da modernidade líquida. Esta imersão no ambiente cibernético, embora inevitável, trouxe os reflexos da “modernidade líquida” e do mundo virtual para a vida real das pessoas. Somente assim, podendo tratar as pessoas como bens de consumo relegáveis à lata de lixo da história, é que as pessoas puderam adotar posturas punitivas tão duras, retrógradas e ditatoriais em relação às outras, tratando fatos desagradáveis ou opiniões discordantes com o rigor de um inquisidor da Idade Média.

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