Poema Dramático

Tipo de documento:Projeto

Área de estudo:Letras

Documento 1

A vida em família, apesar de todas as facilidades que tive, é um desafio atrás do outro. Sinto-me um alienígena em minha própria pele e, por vezes, isto pode ser muito incômodo. Não tenho irmãos; não divido os pensamentos, os sentimentos e o quarto com ninguém. Aprendi desde cedo a engolir o choro por não ter ombros amigos a quem recorrer. Fugia então para meus velhos e eloquentes companheiros: os livros. Sua beleza chamusca o mundo. Deixo de respirar por um minuto. Ela veste um sobretudo marrom de veludo e traz um cachecol em tons pastéis no pescoço, como um anzol que fisga uma sereia. Em seus lábios dança um sorriso tímido. Terra de siena queimada.

Minha mãe era uma mulher ainda muito bela, apesar de toda a amargura que marcava seu semblante. Aos catorze anos, ainda somos arrebatados pelo complexo de Édipo. Disso ela entende, pois é psicóloga. “Homens são eternos meninos”, ela vivia a repetir. Sinto-me um tolo perto dela. Ela poderia secar um jardim inteiro ao falar sobre apego. Meu coração púbere não sabia lidar com tamanha frieza! O liceu distava poucas quadras de nossa casa. Muitas vezes eu dispensava nosso chofeur e caminhava contemplando o céu, as flores e os raros pedaços de pele que ficavam à mostra nos trajes das passantes. Sonhava em apaixonar-me à primeira vista por uma delas e eternizá-la em um poema, como o fez Charles Baudelaire. Garotas da minha idade escondem uma fragilidade fleumática por trás de uma máscara desbotada e lábios rachados pelo frio.

As mulheres são assim: seres indecifráveis como a esfinge, com sorrisos ambíguos de Monalisa, que tanto dizem e não entregam coisa alguma. “Decifra-me ou devoro-te”. E sinto-me literalmente engolido para ser, em seguida, regurgitado. Não creio ter a competência para compreender as mulheres. Sou uma fraude, um fracasso em tantos pontos que nem sei definir. Eu experimentava tamanha solidão que não cabia em mim. Vinham ofertar-me a doçura de sua companhia e a audição paciente de meus ensaios de violino. Meus pais pareciam não se importar com aquelas intromissões de perfeitos desconhecidos. Ocupavam-se de si próprios. Meu insulamento não me inspirava. Apaixonei-me perdidamente – adolescentes apaixonam-se perdidamente inúmeras vezes - por algumas meninas que estiveram em minha casa, contudo não fui correspondido.

Anne Marie estava prestes a casar-se com um italiano mais alto e mais forte do que eu e enxergava-me apenas como um bom interlocutor. Já Sabine atraía-se por seres de seu mesmo sexo. Nos tornamos bons amigos e passamos a conversar por horas ao telefone. Ela me presenteava constantemente com dicas de como lidar com garotas, o que lhes agradava ou repelia. Minha mãe diria, em suas análises, que adolescente é sinônimo de tédio. Faço tudo para fugir dele. Os professores do liceu são todos muito sóbrios: trajam tons pastéis dos pés à cabeça, óculos de grau provavelmente comprados na mesma ótica e penteados muito alinhados. Bom, há uma exceção à toda regra: Monsieur Roger Lapin. Seus cabelos têm o exato tom das asas das gralhas e o mesmo brilho.

Numa quinta-feira chuvosa, vi-me contemplando os corpos nus de homens e mulheres, expostos ali com naturalidade. Sempre vi o nu artístico feminino como algo deslumbrante, cheio de sinuosidades e montes arredondados. Comovente como uma estátua de mármore. Em contrapartida, o que havia de gracioso na nudez de uma mulher havia de grosseiro na nudez masculina. Os corpos eram grotescos, pesados, duros, como pássaros desajeitados incapazes de alçar voo. Eu jamais a abordaria. Só de olhar para ela, sentia-me enrijecer e ruborizar. Um dia ela chamou-me para uma festa na casa de amigos. Não sei porque aceitei ao convite. Ela trajava um vestido negro que marcava seus mamilos e seus cabelos cheiravam à nicotina e colônia barata. Ele ronronava e a geladeira também. Ela falou algo sobre a língua felina.

Não compreendi. A música e as gargalhadas abafavam o som de sua voz. Aproximei meu ouvido de seu rosto. Bastou embalar aquele fino pingente para vê-lo desmoronar, me desmoralizando. Eu dizia a ela que sentia muito, que havia bebido demais e ela já aninhava minha cabeça em seus seios e cochichava “ não tem problema. Tentamos de novo depois”. Esse depois jamais chegou. Não com ela. Assim teria alguma chance com as meninas mais populares. Augustine tinha um sorriso amplo e delicioso, como um letreiro de cinema ou um nascer do sol na primavera; Juliette era fabulosa com seu cabelo negro e sedoso de princesa e seus olhos castanho-amarelados. Ela movia-se como um gato e parecia levitar. A professora de Educação Física, Madame Helene Clement, por sua vez, exibia uma pele saudável e era pálida como asas de borboleta.

Tentava imaginá-la trajando um longo vestido vermelho com uma fenda provocante, oferecendo-me um cálice de vinho. Enquanto todos sorriam e olhavam a objetiva do fotógrafo, meus pelos dos braços eriçaram-se e senti um aroma amadeirado e levemente adocicado invadir minhas narinas. Como ele cheirava bem! Acabei saindo na foto com os olhos semicerrados e um sorriso tolo, numa espécie de êxtase que só eu conhecia. Das empregadas dos meus pais, a mais encantadora era Justine. Tinha dezenove anos, o rosto sardento e cabelos volumosos num tom enferrujado. Divertia-me ao surpreendê-la no corredor, os olhos marejados depois de cortar cebolas. Se tudo fosse como a arte ou a harmonização das cordas, eu não seria um cozinheiro medíocre. Tudo seria uma questão de sensibilidade e prática.

Mas não ousava invadir o recinto feminino. Justine sim, às vezes, invadia meu templo de masculinidade. Ela vinha sorrateira, nas pontas dos pés, com um vestido floral de alças. Desafiávamos as leis de Newton: nossos corpos preenchiam todo o espaço. Eu punha uma música no rádio a fim de abafar qualquer ruído. Quando o relógio de minha cabeceira marcava três horas da manhã, ela beijava meus cabelos e escapulia tão rapidamente quanto havia entrado. Eu dormia tranquilo e feliz por algumas horas. Meus pelos começaram a nascer aos treze anos. Esporadicamente minha mãe organizava um evento beneficente a fim de angariar fundos para causas nobres. Nestas cerimônias chatíssimas, eu me apresentava forçadamente. Sempre tinha que tocar uma peça no violino, ainda que a contragosto.

De repente, a leitura e a fotografia não me satisfaziam mais tanto quanto antes. Parecia que eu já havia visto demais, lido demais e aprendido demais. Já eu via muita graça nos dias chuvosos. Parecia que o mundo se acalmava totalmente, que as pessoas falavam todas a mesma língua. Todos nós estamos inexoravelmente sós, principalmente nos dias chuvosos. Os anjos choram e por isso chove. Sabe o Jacques? Ele me chamou para ir ao cinema – disse ela, com olhar indiferente e perdido. Eu não sentia vontade de ir ao liceu. As investidas noturnas de Justine não me empolgavam mais. Passei a trancar a porta. Ela girava a maçaneta em falso, sussurrava meu nome e aguardava ali por uns vinte minutos. Eu me apiedava dela, mas não abria.

Experimentei uma súbita falta de ar – não, não era asma – e uma leve vertigem. Apoiei-me numa cadeira, ofegante. Pauline perguntou se eu me sentia bem. Assenti com a cabeça. Ela disse que eu estava pálido. Comentei a respeito deste episódio com Sabine, em uma de nossas longas conversas telefônicas. Descrevi minuciosamente todos os sintomas e ela veio com um diagnóstico rápido e certeiro: “ se não está grávido, está apaixonado!” Emudeci do outro lado da linha, enquanto ela, sem dar-se conta, falava a respeito da mulher por quem se apaixonara, uma arquiteta de renome cujos projetos estampavam as páginas de grandes revistas de decoração. Apaixonado, eu? Por Lapin? Perdi a hora naquela segunda-feira. Levantei-me atrasado, correndo, sem tomar café.

Beijei os cabelos de minha mãe, coisa que nunca faço, o que ela deve ter estranhado bastante. Senti-me nu. E lá estava ele: Monsieur Lapin. Direcionou-me um olhar penetrante e atingiu-me em cheio com um bom dia indiferente. Sentei-me em um canto, acanhado. Eu mal discernia o que ele falava. Henri? Todos voltaram seus olhares para mim. Sim, Monsieur Lapin? – balbuciei algumas palavras que custaram a ser ouvidas. De quem é a autoria da obra Tarde de domingo na ilha de grande Jatte? - disse ele, com o cenho franzido. Renoir? – respondi, quase sussurrando. Algumas risadinhas espocaram no espaço. Assistimos a A Liberdade é azul, de Kieslowski. Como Juliette Binoche é bela! Sim, era bela, mas não me fazia suspirar tanto como me fazia Monsieur Lapin. A protagonista tenta suicídio após a morte do marido e da filha.

Faltou um pouco de bom senso a Pauline no momento de escolher o que assistiríamos. Apesar de não assistir às comédias francesas com frequência, acho que, naquela tarde, me cairia bem melhor. Duas lágrimas caíram, uma de cada olho. Não conseguia me concentrar em nada. O rosto de Monsieur Lapin não saía de minha mente. Fiquei ali por um bom tempo, não sei precisar exatamente quantas horas. Entrei em casa. Chegando lá, peguei o telefone e disquei. Reconheci do outro lado a voz rouca e sonolenta de Sabine. Ela respondeu com uma gargalhada curta: - Olá, Romeu. Como está? Senti sua falta. Estou bem. Não é ela. É ele. Uma risada alta estourou do outro lado, ensurdecedora. Bem-vindo ao meu time, meu amor.

– sussurrou em tom de afetuoso deboche. Sentei-me na cama, as pálpebras semicerradas pelo sono. Observei um tabuleiro de xadrez com um jogo em suspenso que estava em cima da mesa. Tratava-se de uma última partida, jogada com Monsieur Danton Valerie, um amigo de meu pai. Eu estava em vantagem. Eu estou em vantagem, pensei, cerrando os olhos e sorrindo, enquanto desabava o corpo exausto na cama. Eu fazia de tudo para manter-me atento, mas recordava-me do sorriso de Monsieur Lapin, de sua mão sobre meu ombro na foto coletiva, das múltiplas cores das roupas com que costumava se apresentar. Eu queria ser um besouro – besouro, não; não são aerodinâmicos e delicados – queria ser uma joaninha para saber o que ele estava fazendo, em que estava pensando, com quem falava.

As aulas demoraram a terminar. Eu olhava para o pulso o tempo todo. Os ponteiros pareciam ter parado. Aos sábados e domingos, todos queriam divertir-se, andar de bicicleta pelo bairro, passear no parque, tomar um pouco de sol. Eu não. Não naquele fim de semana. Eu não tinha nada mais importante a fazer. Eu não conhecia o L´orangerie, no entanto, um artista plástico - com quem ocasionalmente me correspondia - falara muito bem sobre o museu dos impressionistas e pós-expressionistas. Fiquei bastante estressado após o período de provas e este estresse todo refletiu-se em minhas notas. Sempre fui um dos melhores alunos e, no último semestre, poderia considerar-me mediano. De tanto acreditar no fracasso, acabei, de certa forma, sendo abraçado por ele.

Esperava me reestruturar em breve. Como pode um sentimento tão bonito como a paixão fazer nossa vida descarrilar tão depressa? Na véspera do passeio, mal consegui pregar o olho. Fiquei ali, encarando-o, por minutos que pareceram horas. Sem hesitar, ele disparou: - Os afins se atraem e não deve haver nenhuma reprimenda nisso. Em toda forma e gênero? – questionei. Sim. Porque não? – respondeu, com sua segurança habitual. – continuou, filosofando. Uma felicidade não deve ser sacrificada por outra. Nunca. Você é jovem e ainda não entende. Você que é covarde e injusto. Pulei da cama atordoado. Parei para refletir sobre aquele diálogo impossível. Não cheguei à conclusão alguma, somente a de que estávamos ambos vestidos como peças de xadrez.

Um oponente do outro. Tomei um banho rápido, pus meu melhor perfume e vesti o uniforme. Sorri de volta, sentindo o rosto esquentar. Sentamos nos lugares que escolhemos. Madame Leoncourt ofereceu um lugar ao seu lado ao Monsieur Lapin. Ele o aceitou de bom grado. Riram, conversaram e arrotaram filosofias ao longo de toda a viagem. Estava em Paris e Paris pulsava. A cidade era puro movimento. A neve cobria os telhados das casas e podíamos avistar algumas chaminés fumegando. Em nossa primeira parada, tomamos um chocolate quente no Café de Flore, conhecido como ponto de encontro da elite literária e intelectual parisiense, conforme nos informou Madame Leoncourt. Eu estava aliviado e feliz por estar lá e poder contemplar aquele cenário que conhecia através das minuciosas descrições de amigos de carta.

Caí no sono rapidamente. Havia roubado um vinho da adega de meu pai e bebi uns cálices para melhor suportar o frio e a ansiedade. No sábado, tomamos o metrô pela manhã até a Place de la Concorde. O trajeto é bastante rápido. Deparei com algumas pessoas tocando violino ou carregando um rádio onde ouviam rap francês em alto e bom som. Aquelas colunas, que muito remetiam à Grécia Antiga, eram incrivelmente altas e perfeitas. Monsieur Lapin, do alto de sua erudição, disse-nos que o museu tinha esse nome – a laranjeira - porque era onde abrigavam as laranjeiras do jardim. Por que necessitavam de tanto espaço para estocar pés de laranja? Isto era incompreensível. As laterais do museu, todas envidraçadas, guardavam um chão muito branco e grandes salões com obras de arte por todos os lados.

Era muito emocionante estar ali. Alisando os cabelos, continuou: - Tenho lhe achado disperso em minhas aulas, Henri. Suas notas caíram. Não tem me interrompido mais com questionamentos instigantes. O que está havendo? Gostaria de saber. Quer mesmo saber? Minha cabeça anda vazia demais e meu coração, cheio. Falei sobre meus poemas, sobre os que havia lido, sobre meus exercícios no violino. Ele pareceu admirado. Talvez estivesse conhecendo um eu que ele não conhecia. Eu já não me reconhecia mais. Aqueles três dias que passamos lá foram encantadores. Toquei algumas peças de violino e piano acompanhado por Valentine, uma amiga correspondente de dezoito anos. Tocamos composições de Janaceck, Schubert, Bach, Debussy e Elgar. Após o concerto e a chuva de aplausos generosa que recebemos, notei que Monsieur Lapin aplaudia muito comovido.

Disse-me, quando estávamos praticamente sozinhos, que eu teria um brilhante futuro na música clássica. Acrescentou que conhecia alguns membros da Orchestre de Paris e aconselhou-me a continuar estudando para que um dia fizesse parte de seu corpo. As semanas foram passando ordenadas, tranquilas, seguras. Como eu era jovem demais para o entendimento de questões relacionadas ao coração, segundo dizia Lapin, fui amadurecendo aquele relacionamento dentro de mim, antes que ele acontecesse de fato. Eu ia até a sala do professor e questionava sobre algumas obras de arte. Falávamos de música, de culinária, natureza, futebol e qualquer assunto que nos ocorresse. Fomos criando, aos poucos, uma bela amizade. Era uma quinta-feira, portanto, eu estava lá para ver as flores, fotografar pessoas e beber um capuccino.

Enquanto eu me sentava, tendo o café em uma das mãos e a máquina fotográfica na outra, avistei de longe uma figura conhecida. Era ele. Era Monsieur Lapin. Ele estava vestido com um terno ocre, seus cabelos estavam mais desalinhados do que nunca. Meu pedido nem pago estava. Solicitei que ele o embalasse para viagem, bebi o capuccino quente o mais rápido que pude e corri. Alcancei o envelope amassado no chão e o pus no meu bolso. Desembestei a correr. Passei por bares, cafés movimentados, grandes mansões. Enfiei automaticamente a mão no bolso. E quão grande não foi minha surpresa ao perceber que a carta estava lá, mas a bombinha não. Onde ela foi parar? Recordei-me de um ou dos esbarrões que dei: o primeiro em uma menina que corria, o segundo num senhor de idade.

Talvez houvesse ficado para trás. Eu ofegava. Quem aquela megera pensava que era? A troco de que ela indicara Lapin? Ele iria embora para os Estados Unidos e não me diria nada? Por que saiu daquela forma, tão apressado? Reli a carta e as linhas finais diziam que ele deveria tomar posse em três dias. Eu suava frio. Maldita bombinha, onde você foi parar? Minha visão estava turva. Não havia ninguém na plataforma. Nenhum rosto amigo. Eu o amava. Meu corpo parecia feito de gelatina. Eu estava derretendo. Ouvi Sabine falando, entre risos: “ sorte nas próximas jogadas!” Eu realmente precisava de sorte. A minha estava se esvaindo, com todas as minhas forças. Sinto que estou pálido, está frio, cada vez mais frio.

Devia ter trazido um casaco. Ah, Monsieur Lapin, como eu lhe odeio! Odeio-lhe e amo, ao mesmo tempo. Como pôde enxergar tanto e ser tão míope? Talvez tenha herdado as cataratas do Monet. Cataratas na alma. O futuro não tem lugar para mim. Estou morrendo. Adeus.

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